acid mothers temple


N'O meu Mercedes é maior que o teu mas que poderia ter sido numa carrinha Volkswagen estampada do mesmo tamanho que a tua

Nada melhor do que uma expectativa de incerteza para confirmar, depois, a magnitude da presença num evento que teima em não se afastar da consciência. A verdade é que, pensei eu, como vão acomodar-se cinco ou seis (eles parecem-me sempre muitos) psicadélicos e exuberantes indivíduos num tão exíguo espaço? Por outro lado, a possibilidade de estar literalmente embrenhado com eles afigurava-se óptima para absorver a excelência sonora que decerto emanaria, para além de, no fundo dos nossos espíritos, assentar a evidência de que tal cenário apenas encaixa como uma luva nas premissas fundadoras dos Acid Mothers Temple (AMT), que aludem à junção de espíritos livres que não cabem no mainstream. Com confirmações mais ou menos fiáveis da dúvida do local do concerto, foi pela Ribeira portuense que o prelúdio se desenrolou. Admirando a vista para a imediata e metálica ponte centenária D. Luís, e a atravessar um túnel de pedra granítica onde tresandava a urina e outros fluídos corporais sobre os quais não me atrevo a reflectir muito, chegámos ao nosso destino – o pequeno bar “O meu mercedes é maior que o teu”, onde estava agendado um de dois concertos dos AMT em Portugal (o outro concerto tinha tido lugar dois dias antes na Galeria ZDB). O senhor que estava à porta rapidamente confirmou o concerto, pois nas imediações nada o faria prever, acenando com o amigável preço do bilhete, uns míseros 7 euros para ver e ouvir um dos expoentes máximos do psicadelismo nipónico, o que se revela sempre um relaxante natural para a mente e, principalmente, para a bolsa.


Logo à entrada do bar, num pequeno recanto parcamente iluminado, os AMT tinham montado o seu bazar. O mercador de serviço era Atsushi Tsuyama que, apesar do sorriso permanentemente estampado na sua cara, não apregoava aos sete ventos os seus produtos com quaisquer chamarizes, técnica aprimorada ao longo de décadas pelas peixeiras do mercado do Bolhão não muito longe dali. Também não necessitava de o fazer. As relíquias que trazia eram suficientemente apetecíveis e apelavam por si próprias: inúmeros discos de AMT dos quais se destacava um “remake” do original minimalista de Terry Riley “In C”; o projecto “Acid Mothers Temple SWR” (Stones Women & Records) com Yoshida Tatsuya dos Ruins; “Andromelos” uma colaboração ainda desconhecida para os ouvidos ocidentais de Kawabata Makoto com Yamazaki Maso dos Masonna, Christine 23 Onna e Space Machine; o registo ao vivo “Acid Mothers Gong” em Nagoya com Daevid Allen dos Soft Machine e Gong; e outros álbuns a solo de Makoto como “Inui Vol.4” ou “Hot Rattlesnakes” atribuído a “Kawabata Makoto & The Mothers Of Invasion”. Nesta pequena amostra somos confrontados com a incrível proficuidade deste colectivo que torna difícil ou impossível, mesmo ao mais fanático melómano, de seguir com detalhe a vasta produção editorial.


Mas situemo-nos: desde 1995 que este grupo freak-out para o século XXI se associa a variadas editoras internacionais de modo a tornar acessíveis as suas edições, mas também como uma válvula de escape que permite suster o jorro das explorações sónicas que vai criando, quer enquanto soul-collective fundador (Acid Mothers Temple & The Melting Paraíso U.F.O., sendo as últimas letras um acrónimo para Underground Freak-Out), quer dando corpo a demoníacas mutações (AMT & The Cosmic Inferno), ou ainda a um incontável cardápio de colaborações e a uma energia cósmica que catapulta o seu mentor, Kawabata Makoto, da produção a solo até ecléticas inclusões noutros grupos. Perante as múltiplas facetas dos AMT, ainda pensei em averiguar se teriam integrado na sua discografia um registo da suposta ligação ao culto Aum Shinrikyo (tido como o responsável pelos ataques com gás Saryn no metro de Tóquio em 1996) fruto de uma suspeita da população de que na comuna hippie dos AMT se esconderiam os elementos da dita organização.


Por entre as compras no bazar e os acordes do tímido Tenaz (que chamou a atenção pela baixa auto-estima revelada, por citar Derek Bailey e por não ter tornado penosa a espera até aos AMT), os olhares centram-se então numa pequena personagem de feições orientais, vestida de cabedal, sentada no chão a um canto, no vão da escada em espiral que conduzia ao segundo andar do bar. Um olhar mais atento e chegamos à conclusão que se trata, nada mais, nada menos, do que Kawabata Makoto. Dirijo-me para falar com ele, baixo-me um pouco e desejo-lhe um bom concerto. Este responde com dois ou três sons guturais e imperceptíveis. Enquanto aguardo pelo concerto vou olhando ocasionalmente para Makoto que, quando os cabelos negros cobriam por completo a face, desaparecia por completo nas sombras, como que num passe de mágica. Por mais atento que o meu olhar se tornasse, os esforços eram inglórios para conseguir decifrar o seu estado de espírito, pois a sua pose facilmente indiciaria um estado estuporizante induzido por substâncias (perspectiva coerente com o protótipo do grupo rock psicadélico ocidental), como também deixava perceber-se nalguma posição meditativa, ou simplesmente sentado a relaxar… Na verdade, nem parecia estar em condições para se levantar, quanto mais tocar um concerto! Pensei no slogan da família AMT (“Do whatever you want, don’t do whatever you don´t want!”) e adaptei-o fielmente ao Makoto que vislumbrava. Qualquer que fosse a resposta a estas questões que não interessam nem ao menino Jesus, a verdade é que ali estava o protótipo do guru, esperando pacientemente pelo momento certo para derramar os seus ensinamentos sobre os aprendizes. É nesta sugestiva ambiguidade que vou pensando na cosmologia dos AMT e na imprevisibilidade do seu significado: ora plácidos e cândidos, planantes; ora abruptos samurais avassaladores, abrasivos.
Quando os olhos voltaram ao recanto de Makoto, este já o havia abandonado. Como um oráculo que ainda agora fazia querer nas vastas faculdades da energia cósmica que com certeza ele estaria a invocar, algo que apenas pode ser imaginado, pois quando se olha para confirmar…ele já lá não está. Olho para o palco e lá estão eles finalmente: o “cosmic joker” Tsuyama Atsushi no baixo e vozes, o “dancin’ king” Higashi Hirosh nos sintetizadores, guitarra eléctrica e vozes, o “latino cool” Shimura Koji na bateria, e o “speed guru” Kawabata Makoto na guitarra eléctrica e vozes.


Metaforizando a sua posição central no alinhamento, os primeiros sons emanam do sintetizador cósmico de Higashi, preparando o ouvinte para algo que não tem preparação possível. A textura e envolvência destes pequenos interlúdios sintetizados electronicamente, que acabam por pontuar os vários momentos entre músicas do concerto, não são de todo estranhos a qualquer pessoa que tenha ouvido pelo menos um disco de Acid Mothers Temple. Estes são, aliás, uma das imagens de marca da sua música, que funciona como um elo de ligação entre o delírio terreno e a evocação à vastidão planetária na procura do nosso lugar. O aviso é dado quando o volume das ondas sonoras do sintetizador de Hiroshi gradualmente começa a decrescer dando por fim início ao assalto sonoro. O virtuosismo de Tusyama que, encostado a uma parede, debitava frequências subterrâneas de rebentar qualquer amplificador, associava-se aos ritmos motóricos da singela bateria de Koji, que pareciam estender-se num espaço sem fim, até uma simbiose quase perfeita. Do outro lado do pequeno palco estava o transfigurado Makoto que, desafiando a percepção, antropomorfizava a sua guitarra, punindo-a com iluminada mestria e velocidade estonteante. Afinal ele estava na posse de todas as suas faculdades, ou talvez estivesse ele próprio possuído. As suas palavras talvez ajudem a compreender o que se passava:


Music, for me, is neither something that I create, nor a form of self-expression. All kinds of sounds exist everywhere around us, and my performances solely consist of picking up these sounds, like a radio tuner, and playing them so that people can hear them. However, maybe because my reception is somewhat off, I am unable to perfectly reproduce these sounds. That is why I spend my days rehearsing.
Where do these sounds come from? Who is sending them out? That is not something for me to know, and neither is there any way that I could find out. I simply believe that they come from the 'cosmos'. (Maybe other people would call God the source). Since I was a small child I have been prone to hearing ringing sounds in my ears and other sound phantasms. At the time, I believed that these were messages aimed directly at me from a UFO, and so I would gaze up at the sky. But once I started playing music myself, I came to feel that these noises were a kind of pure sound. And I promised myself that one day I would be able to play those sounds myself


Kawabata Makoto (2000)


Um dos pontos altos – se é que estes podem ser discriminados – foi “Pink Lady Lemonade”, um dos temas mais conhecidas do obscuro e enciclopédico repertório dos AMT, pontuado por inúmeros crescendos e momentos de quase silêncio que se conjugavam numa espiral delirante da qual parecia ser impossível sair, ou melhor, impossível de querer sair. As parcas palavras eu próprio entretanto vociferava resumiam-se às requisições de cervejas, não fosse um contacto social mais elaborado concorrer com os devaneios imateriais em que flutuava. Nesta altura do concerto já toda a percepção de espaço, mas principalmente de tempo, se tinha perdido irremediavelmente. O concerto acabou subitamente, sem encore, por volta da uma e meia da manhã, mas tanto podia ser ainda onze e trinta e cinco e a noite estar a começar, como sete horas e o dia estar a nascer.No final, tempo ainda para nova incursão no bazar entretanto reaberto onde surgiu a oportunidade para falar com Atsushi Tsuyama. Disse-lhe que gostava muito do seu disco “Starring As Henry The Human Horse!” e ele agradeceu, sorriu e mostrou o seu novo disco a solo por entre os inúmeros títulos para venda. Já no exterior do bar, e enquanto procurava integrar uma experiência que sem dúvida irá ficar gravada na minha memória com caracteres doirados, eis que surge ao largo um realmente conectado Kawabata Makoto para se sentar num dos bancos com vista para o rio Douro. A sua companhia era um pequeno laptop com a marca da maçãzinha. Trocámos umas palavras com ele sobre o concerto e os próximos destinos da digressão. A sua simpatia, o seu discurso articulado, e o computador que tinha no seu colo, revelavam mais uma faceta do seu carácter, de homem ou músico contemporâneo, depois do buda sentado e da besta possuída em palco. Nós prosseguimos, a tentar colocar o que se passara num local apropriado.

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